Preocupante a falta de dados sobre trabalho infantil no Brasil

O trabalho infantil traz diversos impactos em crianças e adolescentes, como problemas físicos e psicológicos, além de dificultar e até impossibilitar o contato do jovem com a educação, o lazer e o esporte. Esta mazela leva a perpetuação do ciclo da pobreza em famílias de baixa renda, desprepara o jovem para o mercado de trabalho, reduz sua expectativa de vida e os torna mais suscetíveis a doenças, mutilações e acidentes de trabalho.

No Brasil, o trabalho é proibido para crianças e adolescentes até os 16 anos. Porém, há uma exceção para jovens a partir dos 14 anos, que podem trabalhar como aprendizes. A Lei de Aprendizagem orienta que empresas de médio e grande porte podem contratar jovens de 14 a 24 anos, que serão preparados para o mercado de trabalho com atividades teóricas e práticas, sem comprometer a frequência escolar.

No combate ao trabalho infantil, os dados são fundamentais para a redução dos casos. No entanto, o Brasil não sabe ao certo quantas crianças e adolescentes estão submetidos a esse tipo de trabalho desde 2017, última vez em que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou estudos, com base em pesquisa realizada no ano anterior. Naquele ano, o País contava com 2,3 milhões jovens trabalhando de forma irregular. O Instituto comprometeu-se a divulgar novos dados em junho deste ano, contemplando números de 2019.

O atraso na divulgação de novos estudos preocupa o Ministério Público do Trabalho (MPT) e toda a rede de proteção às crianças e adolescentes, que acreditam no aumento significativo do trabalho infantil. Segundo o procurador do Trabalho Edno Moura, a partir do momento em que se deixa de compartilhar novas informações, não se tem a principal ferramenta para a elaboração de uma política pública eficaz de combate ao problema.

“Se não tem dados, as políticas públicas estarão fadadas ao fracasso, pois seriam ‘tiros no escuro’. Com essa falta de atualizações e posterior redução nas políticas públicas, percebe-se que o combate trabalho infantil deixou de ser uma prioridade no atual cenário econômico e político brasileiro, o que é bastante preocupante”, alerta o procurador.

Polêmica envolvendo a mudança na condução da pesquisa

O procurador ainda criticou a mudança no formato da pesquisa, que retirou aqueles que trabalhavam para o próprio consumo do número total de crianças e adolescentes trabalhando de forma irregular. Após ser criticado, o IBGE voltou atrás e recolocou esses jovens no contingente total, subindo de 1,8 para 2,3 milhões o número de submetidos ao trabalho infanto-juvenil. “Quando você tira esses jovens do universo do trabalho infantil, sinaliza que essas crianças podem continuar trabalhando. Se não aparecem nos dados, são ‘invisíveis’. Se são, não é possível combater. Ninguém consegue lutar contra o que não enxerga”, afirmou o procurador.

Edno Moura cobra ainda estudos mais precisos do IBGE, com números estaduais e municipais, para que os governantes possam agir com base nas particularidades locais. “Como é possível combater o trabalho infantil sem dados municipais e estaduais? A última pesquisa com divisão por estados foi divulgada em 2016, com dados referentes a 2015. Como exigir políticas públicas do Estado, do município, se eles desconhecem a situação atual?”, pontuou.

Crítica aos discursos favoráveis ao trabalho infantil

É comum ouvir no Brasil que o trabalho precoce enobrece o jovem, o que é uma visão equivocada, devido às consequências graves ao desenvolvimento físico, mental e intelectual, consequência dessa atividade. Segundo o procurador, discursos favoráveis a esta prática, principalmente vindos de pessoas públicas, como governantes, empoderam o trabalho infantil e dificultam ainda mais o seu combate.

“O que nós vemos na sociedade é que existem dois lados entre os que defendem o trabalho infantil. A primeira da classe de maior poder aquisitivo vê pessoas pobres como potenciais marginais e entendem trabalho precoce como única alternativa contra a criminalidade. A segunda formada por famílias pobres, que veem nas crianças um meio de aumentar a renda de casa. Quando somamos essas ideias ao discurso das autoridades de que esta forma de trabalho é benéfica, fica mais difícil combater”, explicou.

Acidentes de trabalho envolvendo jovens

Entre 2007 e 2018, o Brasil registrou quase 44 mil acidentes de trabalho envolvendo crianças e adolescentes entre cinco e 17 anos, segundo dados do Ministério da Saúde. Neste período, houve cerca de 260 vítimas fatais. Segundo o procurador, os casos comprovam a maior vulnerabilidade dos jovens. “Eles estão, sim, mais suscetíveis. Não dispõem de ferramentas e equipamentos de trabalho adequados. Outro ponto é a pressão psicológica no trabalho. Ela é comum nos adultos, afetando bastante. Então, imagine o quanto isso afeta as crianças, ainda imaturas e em fase de desenvolvimento”, justificou.

Exploração domiciliar x afazeres domésticos

A forma de trabalho infantil mais comum, embora pouco denunciada, é a que acontece dentro de casa. Os jovens que trabalham em ambientes domésticos estão sujeitos a várias situações perigosas, como utilização de produtos químicos inadequados, mutilações pelo contato precoce com fogão e ferro de passar, por exemplo, além de agressões físicas e exploração sexual. Ainda assim, é necessário distinguir trabalho doméstico de afazeres domésticos, segundo o procurador Edno Moura.

“Se uma criança está prestando serviço na residência de um terceiro que não tem relação com a sua família, é trabalho infantil sempre. Não importa o tempo em que esteja lá ou se estuda em um dos turnos. Agora, quando a criança vai para a escola e lava as louças em casa, limpa seu quarto, tendo tempo para estudar e brincar, não é trabalho infantil. Atividades como essas até ajudam na disciplina e na organização. Mas, se a criança chega da escola e desenvolve várias atividades, esgotando suas forças, é trabalho infantil, mesmo dentro da própria residência”, explicou.

Como o trabalho infantil não é considerado crime, a fiscalização em residências é impedida judicialmente, o que dificulta o combate e torna esta forma de trabalho a mais comum e ao mesmo tempo a menos notificada. No entanto, o trabalho pode ocasionar crimes, como maus tratos, mutilações do empregador e abusos sexuais. Caso denúncias como essas sejam feitas ao MPT, o órgão poderá adotar as medidas necessárias.

Lista Tip

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) criou uma lista com as piores formas de trabalho infantil, chamada de Lista Tip. Dentre as condições de trabalho mais graves estão aquelas realizadas em casa, em lixões, oficinas, postos de lavagem, em construções civis. Além dessas, há a exploração comercial sexual de crianças e tráfico de drogas.

Segundo o procurador, o Brasil comprometeu-se perante os organismos internacionais a erradicar as piores formas de trabalho infantil em 2016. No entanto, em 2020, a realidade é bem diferente do que se pretendia, por conta da falta de políticas públicas eficientes e adequadas às particularidades de cada região. “Não pode existir apenas uma política pública vinda do Governo Federal, porque ela é genérica, não olha individualmente para os estados e municípios. A atual política pública é nacional e chegou a um estágio de estrangulamento, em que não avança mais. Como resultado disso, o trabalho infantil só cresce. Realidade que vemos diariamente”, criticou.

MPT na Escola

O projeto objetiva formar uma geração mais consciente dos seus direitos e do poder da educação, buscando desenvolver nos jovens a convicção sobre os benefícios dos estudos e os malefícios do trabalho precoce. “Embora não atinja todos os municípios, o projeto é fabuloso. No entanto, muitas crianças estão apenas formalmente na escola. Não assistem as aulas porque estão trabalhando. Com isso, o projeto não chega a todos. Precisamos mudar isso para que, no futuro, não tenhamos mais criança trabalhando”, disse.

O procurador conta que é preciso mudar a ideia de que as crianças só precisam simplesmente estar na escola. Na verdade, elas devem gostar do ambiente e gostar de estudar. Para isso, defende escolas em tempo integral. “Elas podem ser importantes no processo de combate ao trabalho infantil. A criança ficaria na escola desenvolvendo atividades de sala, extraclasse e tendo auxílio de professores e psicólogos. Precisamos mudar a mentalidade de famílias que querem colocar seus filhos para trabalhar tão cedo”, finaliza.

Denuncie!

As denúncias de trabalho infantil podem ser realizadas através do site da Procuradoria (http://www.prt22.mpt.mp.br/), na aba de “denúncias”, presente na área de serviços. Depois, o interessado pode fazer a denúncia, sem a necessidade de se identificar. O MPT preserva a identidade do denunciante.

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